sábado, 8 de setembro de 2012

O Hornelas

 
Imaginem uma haste de capim, alta, fininha, flexível e sempre a dar a impressão que vai partir e não se sabe por onde: é assim o Hornelas. Um milagre de equilíbrio num esqueleto que, visto de lado, parece a risca de um fato.
Ao olhar vivo não lhe escapa nada. O sorriso permanente na cara redonda e um humor sempre á tona das palavras dão-lhe um ar mais jovem, apesar dos trinta e tal. Só tem uma mulher e anda contente com isso, porque lhe diminui o risco de ter chatisses todos os dias, em casa. É, confessadamente, um apoiante do MPLA e teve direito a uns miminhos nestas eleições: farda de trabalho completa e outras coisas que não são para aqui chamadas.
O Hornelas é motorista de um camião chinês e trata-o melhor do que muitos tratam as mulheres. Conduz também uma plataforma porta-máquinas, enorme, que torna quase impossível acreditar que aquela criatura tenha força e energia para tais proezas.
O Hornelas é um malandro quando toca a baldas. Sempre na vanguarda de uma capacidade inventiva apenas ultrapassada pelo Sebas, teve há tempos a oportunidade de ficar uns dias de "molho". Apanhado numa confusão de posse de terrenos entre proprietários, aguentou com umas palmadas e foi, literalmente raptado. Depois de solto após a confirmação da sua inocência, dizia, ainda dorido:
- Tive sorte! Estava lá um tipo que eu conhecia!
Com amigos assim, mais valia andar aos abraços com os inimigos. Imagino que, se não tivesse lá o tal amigo, tinha ficado livre da sova que levou.
Chamam-lhe carinhosamente - e vá lá saber-se porquê - o "Boxeur da Noite".
A minha dúvida é saber se, com as luvas calçadas, ainda é possível ver alguma parte do seu corpo esguio.
O Hornelas é um tipo fixe, apesar de tudo. Foi dos que ameaçou votar UNITA se eu me viesse embora para Portugal, sem o regresso garantido.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Os Kumpapatas

São importados aos milhares da China, custam cerca de 1.700 USD (mais ou menos 1.500 euros) e são um milagre da mecânica e da construção de veículos motorizados. De uma solidez quase suspeita, arrastam-se pela Estrada de Catete, voando de faixa em faixa com o á vontade de quem conhece todas as regras de trânsito, quando, na verdade, a grande maioria dos seus condutores nunca viu a cor de uma Licença de Condução. Pior ainda: os seus tripulantes atravessam de um lado para o outro da estrada com uma impunidade absoluta e convictos da sua indiscutível prioridade. Não sei o motivo, mas a verdade é que têem o hábito de circular do lado esquerdo da estrada, perturbando a velocidade e o fluxo do trânsito e indiferentes ás milhares de viaturas que os rodeiam. Usam-se como taxis. Não há cargas que lhe estejam vedadas: brita, areia, mobília, postes eléctricos, latas de tinta, etc. É inacreditável a resistência e a capacidade de carga destes pequenos veículos, transportando enormes volumes e pesos pelas ruas dos bairros periféricos, intransitáveis para qualquer "turismo". Transportam pesos que podem rondar os 1.000 kg. E pessoas! 10/12 pessoas, naquela pequena caixa metálica, todos de pé e num equilíbrio instável e bamboleante, com frequentementes falha mecânicas, ocasionando acidentes com alguma gravidade. Os seus pequenos motores de 125 cm3 desenvolvem uma potência impressionante.
Chamam-lhes "Kumpapata", palavra de um dialeto angolano que quer dizer "apalpar". Na verdade, não vejo bem a relação do nome com a função, mas lá que deve ter alguma relação, deve!
Os Kumpapata são um motor importante da pequena economia familiar, girando constantemente em busca de clientes e perturbando o já complicado trânsito da Estrada de Catete.

PS: Um agradecimento ao Dr. GM, que, pacientemente, hoje mesmo, fotografou e me enviou as fotografias deste post.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O embate...

A Estrada de Catete, atira-nos para outro mundo. Em meados de Junho, 2 dias depois de aterrar em Luanda, desaguei na Estrada de Catete. Em filas com centenas de carros, espelho com espelho, lá fui procurando uma aberta para mudar de faixa e poder circular com mais á vontade. Luta inglória! Na Estrada de Catete, os carros nascem do pavimento. É o reino da Toyota e dos camiões  voadores chineses; é a patria de taxistas e candongueiros; é a terra dos Baldex, dos Kewezeki, dos Kawazeki e dos Kiwiziki, uns miraculosos triciclos motorizados importados da China que podem transportar cargas incrivelmente pesadas e volumosas.
Conduzir ali é como andar na montanha russa: nunca se sabe a potência do murro no estômago, que é como quem diz, é o sitio onde vai ver coisas que nunca viu e, provavelmente, nunca mais verá em lugar algum. Por ali voam motorizadas a circular livremente em contramão; milhares de pessoas que brotam, literalmente, de uma espécie de passeios de terra, atravessam a estrada obrigando os condutores a desvios no último segundo ou a travagens constantes; a Estrada de Catete é um mercado com quilómetros de extensão ladeando o asfalto. Acho mesmo que será o mercado mais comprido do mundo!
Em três meses de viagens diárias Luanda-Viana, aprendi que esta via é a artéria aorta da capital. Por ali circula tudo o que a cidade necessita para alimentar as suas centenas de milhares  de habitantes e as inúmeras obras que alteram o seu aspeto. É como um rio de caudal constante e a actividade económica que gira á sua volta, é essencial ao dia a dia do próprio país.
Aqui contarei as histórias da gente que me acompanhou nesta aventura africana e ás quais me liga um sentimento de franca amizade e respeito pela sua luta diária pela sobrevivência. Aqui contarei a história do Fininho, Domingos de nome,"o bom malandro", bom operador de qualquer coisa que tenha motor, mas refilão; do Hornela, também Domingos,  o " boxeur da noite", um condutor de camião tão magro como uma alavanca de velocidades; do Cristo, Cristóvão de batismo, "o sorridente", um tipo calmo e com uma piada sempre pronta a sair; do Sebas, Sebastião de registo, "o calado", sempre preocupado com um velho FIAT minúsculo, cheio de avarias diárias; do Vicente, "o mágico", motorista de general que agora conduz um porta máquinas e que tem o dom de desaparecer em segundos da vista de todos; do Pitra "o mergulhador da camanga", mecânico habilidoso de mãos e bem falante; do Paulo, mecânico de humores e amores que, por causa das mulheres (3 ao que dizem), passou um mau bocado e ia ficando sem pio; do Sr. Pinto, português, expatriado, chefe da oficina e operador de milagres, cuja capacidade inventiva e de desenrrascanço é notável; do Mário, um pedreiro com 3 ajudantes, perfeito no que faz mas lento como as tartarugas; do Beja, um serralheiro ex-seminarista, que sabia tudo e era teimoso como uma mula; do Bernardo, segurança na Fazenda e ex-caçador de crocodilos e toda a bicharada na Lunda Norte; do Dinis, sempre preocupado com os problemas familiares e detentor do maior sorriso de Angola; do David, filho de Soba, ex-sargento, com 2 mulheres (o avô tinha 4); do Júlio, "o dorminhoco", um jovem segurança que não pode ver uma cadeira vazia, onde se senta e logo faz companhia a Penates, o deus do sono; do Jesus, que diz que nasceu na guerra, cresceu na guerra e viveu na guerra; do Avelino que partiu em viagem para Malange em busca de outra mulher para substituir a que o abandonou; do Baíca, o "Dom Juan" do celular; do novo segurança, o Jeremias, que teve direito a umas botas que o obrigam a dar dois passos antes de sair do mesmo sítio; das zungas (as vendedeiras ilegais) e das quitandeiras(as legais); dos gira-bairros, Toyotas Corolla, de cor vermelha, a cair de podres e que milagrosamente circulam até ao 1º acidente, onde são abandonados; dos kumpapatas, os taxi-triciclo; dos candogueiros (taxistas ilegais) com os seus Toyota Hiace, amarrados por arames que condicionam todo o trânsito citadino; dos pedregulhos abandonados na estrada que substituiram, após uma paragem forçada, o triãngulo de sinalização; etc.
A Estrada de Catete é o paradigama da Angola actual: sempre viva e dinâmica, sempre surpreendente, sempre esperançosa em melhores dias.
A Estrada de Catete tem mil histórias, todas de vida, todas humanas! Espero ser capaz de as contar!